domingo, fevereiro 04, 2007

A noite

Tal escravo, novo, com ar robusto, na sua melhor forma física, lá fiquei novamente de Banco num Sábado e desta vez de noite.
Não que faça muito, como qualquer Interno nos dois primeiros anos de trabalho. Mas na verdade, lá vamos vendo os doentes, tomando algumas, poucas decisões e perguntando quase tudo. Vemo-nos em apuros quando temos Enfermeiros experientes, parecendo que nos estão a pôr à prova e constantemente a interpelar sobre a terapêutica de cada um dos doentes, mesmo que tenha sido revista 5 minutos antes. Como se conseguissem sentir o nosso pouco à vontade, o nosso calcanhar de Aquiles nesta fase, a prescrição terapêutica. Nem são os fármacos, o seu grupo, classe ou nome, mas esse flagelo do conhecimento médico, a dosagem e seus ajustes constantes em urgência!

Mas fora esta aprendizagem quase a martelo, que ou entra à força ou então parte, o Banco foi calmo inicialmente. Também que se pode pedir mais no IAU? Estava tão calmo que por volta das 4.30 horas decidimos ir descansar um pouco, para voltar daí a pouco. Mal sabíamos nós que essa noite não seria tão calma como de início. Passados apenas 10 minutos de ter feito a melhor cama que se pode fazer com um colchão de 5 cm de espessura, um par de lençóis e um cobertor, ouvimos uma voz suave que julguei ser a princípio de um anjo que na noite entrava nos meus sonhos. Anjo demoníaco que de boas novas nada trouxe e lá tivemos de nos levantar com toda a velocidade que é possível a uma hora destas e lá fomos tentar reanimar um corpo, desprovido já então da sua alma, que decidira passar a ponte precocemente para o Mundo de lá. Mais uma vez uma má interpretação da Morte que ao entrar num quarto da enfermaria se enganou na cama e no doente. E após 30 minutos de manobras de reanimação, declarou-se o óbito, de forma tão cruel, quanto pode ser a morte de uma pessoa aparentemente saudável, quando os moribundos permanecem numa serenidade agónica.
E se a teoria do caos fosse só uma ideia, não concretizável, tudo teria cessado por aqui. Mas com um problema vem sempre outro e outro atrás, e agora surgia um no IAU e outro na Reanimação, que nos obrigou a dividir esforços. E eu acabaria por permanecer sozinho no IAU, para tomar a frio decisões que nunca antes tinha tomado sozinho. Iniciar fármacos que tinha observado antes, de forma que tinha observado antes, para fins que tinha observado antes, mas em situações em que não tinha a responsabilidade de comando. Mas felizmente a vontade de não estar sozinho, nesta fase, em momentos destes, prevaleceu e uma presença de espírito inesperada que ultrapassava o meu próprio ser, fizeram-me, aparentemente tomar as decisões correctas e lá melhorou, o senhor que estava a descompensar. O grito de vida, neste caso afastou esse espectro negro, que ainda se ocupava da alma que levara minutos antes.

Fiquei orgulhoso de mim mesmo, mas é uma experiência que não gostaria de repetir tão cedo, a não ser que seja extremamente necessário. Estamos numa fase de aprendizagem e gostamos de sentir a segurança de um Sénior, alguém bem mais experiente, que tome as decisões nas dificuldades.
Quando chegeui a casa esta manhã, "eufórico" com tanta agitação, não consegui descansar, prolongando a noite, aproveitando para sonhar acordado. E o mal é que já estou novamente Sábado de Banco...

Nos momentos difíceis é que se vê do que somos feitos.

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